terça-feira, 31 de dezembro de 2013

Sardas


Algo se perdeu no cheiro daquele abraço
Nos deixando sem graça naquele embaraço
Um pedaço da realidade, feito de imaginação
Uma porção de sonho vazando do coração

Falar pode criar cenas verdadeiras das mais belas
Algo em tua profunda iris me liberta de minhas celas
Mas creio que o segredo do amor está no tocar
Teu corpo em contato com o meu nos faz harmonizar

Vejo uma miríade de cores invisíveis em tuas pupilas
Então por um breve instante meus temores aniquilas
E cá estamos no silêncio infinito de um breve olhar
Para ao fim do contato minha nobre ilusão desfolhar

Irradia teu sorriso meigo, tão neutro que se faz malévolo
Somos tão insignificantemente diferentes no frívolo
E tão significantemente semelhantes no importante
Ainda assim o que nos aproxima te torna mais distante

Desperto lentamente de mais uma hipnose onírica
Voltando a realidade que nunca fora minimamente lírica
Sonhada por um coração quase sempre confuso
Me faço consciente novamente de meu ser obtuso

Quem sabe um dia não me procure
Então de antigas feridas eu me cure
Enquanto procuro avidamente me encontrar
Me perdendo nos teus mistérios a desvendar
   

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Y



Me encontro sentado, com as costas arqueadas feito um idoso,
Debruçado sobre os joelhos respirando ofegante e desgostoso
Em minhas mãos uma memória e um instrumento de violência.
Manchando os poemas aos meus pés escorre a sua essência

Cartas e mais cartas espalhadas pelo chão, amassadas
Cartas estas seladas, nunca lidas, jamais enviadas

Nem pareço ter a idade que tenho, carrego o peso de cem anos
Já você, leve como uma vespa continua astuta e jovial
Deixando um rastro de destruição e ignorando os danos
Devorando inocentes corações, como um voraz canibal

"Vê se vira homem!"

Ainda lembro de suas últimas palavras amargas e cruéis
Impensadas feito o rubro sangue que sujam estes papéis
Dia após dia tentei compreendê-las, isso eu te juro
Enquanto navegava num barco à deriva sem porto seguro

Não houve rum que me fizera afogar o seu ódio insolente
Não houve aguardente que mantivesse quente meu coração doente

Essa frase abalou minhas estruturas feito explosão de dinamite
Tais palavras me remontam à lembranças em que fui desafiado
Me foi passada a ideia de que homens ultrapassam o limite
Em todas as vezes nunca entendi plenamente o significado

"Você não é homem!"

Muitas vezes foi esperado de mim atitudes negativas
Um macho alfa coleciona histórias de iniciativas
Em brigas e confrontos queriam ver agressividade
Até mesmo fazer o mal, jamais aceitando a passividade

O homem traz o fardo e o privilégio de ser o grande conquistador
Ter menos pudor, é o desbravador, tem de ser dominador

E logo você não esperava menos que toda essa premissa
Meu maior erro foi tratá-la com todo respeito como uma igual
Trazia consigo um forte desejo de ser domada e feita submissa
Apesar de tudo em você era forte esse instinto animal

"Você nunca vai ser homem"

E então o fatídico dia, te encontro em casa sozinha
Não faço cerimonia, entro sem pedir ao menos licença
Você surpresa me insulta e diz que não mais a tinha
Mas a sua cultura me ensinou a não tolerar tamanha ofensa

Queria ciumes e ser usada, deixo ao lado uma câmera e pego a cinta
Você queria isso, não minta, apenas sinta, quase implorou faminta

Você tenta lutar, mas sempre reclamou de eu ser mais forte
Talvez nesse papel de homem eu me encaixe, veja que sorte
Você queria ter fotos sensuais, com o perigo de cair na rede
Não se preocupe com vergonha, trouxe vinho pra saciar sua sede

"Você é um monstro!"

Talvez então finalmente tenha entendido o que é ser homem
Nessa sociedade machista, tem que ser covarde e botar medo
No abate há quem mate a carne que os outros comem
Com a faca em punho, esta noite serei o açougueiro neste enredo

Recito Bukowski enquanto em desespero se encolhe no canto
Me comove seu pranto, com uma foto me espanto, e eu sinto tanto

Jamais aceitaria me tornar isto, que admira e te apavora
Então em um corte profundo pus minhas tripas fora
Me sentindo honrado por não me deixar cegar pela amargura
Você se afasta o máximo que pode, como eu deveria ter deixado, antes desta loucura

"Eu te odeio!"

Isso me tranquiliza, ainda sente algo afinal,
Perdi total controle de tudo que carrego comigo
Fiz das tripas coração, para não te fazer mal
No fim sempre tivemos em comum o inimigo

Só agora reparo nas cartas que joguei ao chão
Não fui são, sem qualquer razão, foi tudo em vão

Em meio a tantos erros e arrependimentos insanos
No fim entre razão e sentimento, somos nada além de humanos
Mesmo sabendo que não fiz escolha alguma certa
Ainda me preocupo...

"...Você deixou a porta aberta"
   

quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Flagelo das sombas

Moon - Tomohide Ikeya


Sofro de um mal sem cura
Não tem médico que diagnostique
Não há curandeiro que resolva
Nem santo que expurgue com milagre

Já tentei toda sorte de alopatas
Inexiste terapia que descomplique
Me afogando em doses homeopáticas
Procurei em mim o antídoto do veneno

Quanto mais vasculho, mais intoxicado fico
Não sou o primeiro a sofrer por isso
Nem mesmo o último por isso morrer
Estou infectado com o parasita sem nome

Sutil como uma poderosa bactéria
Resistente como um vírus ou uma ideia
Se alastra por todos meus nervos
Envolvendo meu coração e cérebro

Droga potencializada por emoções
Emoções alimentadas por memórias
Memórias sustentadas pelo futuro
Futuro faminto por perspectivas

Não fora sexualmente transmitida
Tampouco adquirida pelo ambiente
Há muito tempo em minha alma plantada
Cresce forte com o tempo, paciente

Tempo este, cruel e traidor
Relativo quando lhe interessa
Absoluto para despertar pavor
Brincando com sua foice sem pressa

No terreno já seco e desabitado
A praga se desenvolve livre
O arado se encontra abandonado
A terra aos poucos não é mais fértil

Sua poda está atrasada
As raízes já se fazem profundas
Finos ramos pretos se espalham feito veias
Grossos fios negros de cabelos enrolados

Ao horizonte apenas a tempestade redentora
Rego o silvado com a cinza água pútrida
É o que posso juntar da sujeira do céu
E das profundeza líquida das pedras

Em meio a escuridão então percebo
Há todo um novo habitat obscuro
Que ainda assim se faz fluído
Soturno, porém vívido e belo

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

Amnésia



Não me lembro de mais nada.

Te esqueci completamente.

Não lembro mais das tuas qualidades, tampouco lembro dos seus defeitos. Não lembro daquilo que te irritava, sequer lembro do que gostava. Não lembro como se comportava, nem da forma como pensava. Não lembro mais das cores de esmalte que mais gostava, das roupas que mais usava ou do chinelo que adorava. Não lembro do que odiava em si mesma, ou como tua aparência, apesar de te incomodar, me fascinava. Não lembro das tuas inseguranças, nem da tua timidez, tampouco da tua risada.

Esqueci do calor do seu corpo e de tuas bochechas coradas.

Não lembro da música que te fazia sorrir, nem da série que acompanhava. Não lembro do seu animal de pelúcia favorito, não lembrou do seu autor predileto ou do filme que amava. Não faço mais ideia de qual chá que gostava, ou que receita fazia bem na cozinha. Não lembro a forma como me olhava, nem seu peso sobre meu peito. Não lembro da tua voz, tampouco da forma do seu sorriso. Não lembro como teu animal de estiação te alegrava, não lembro do seu jeito criança nem da tua forma de ser desajeitada.

Esqueci do seu cheiro e esqueci do seu sabor.

Não lembro mais dos nossos momentos, sequer quanto te amava. Não me lembro dos presentes que me dera, nem das carícias com as quais me agraciava. Não lembro dos meus erros, muito menos de minhas promessas abandonadas. Não lembro do seu corpo, não lembro do seu toque, não lembro do seu sexo, muito menos se era por mim apaixonada. Não lembro das tuas cicatrizes do passado, tampouco das tuas histórias e mágoas. Não lembro do seu quarto, da cor do seu lençol ou como tuas roupas ficavam dobradas.

Esqueci do seu abraço e esqueci do toque de seus lábios.

Não lembro mais de seus segredos, nem de tuas decepções ou amores anteriores. Não lembro como me preocupava, do quanto me desculpava ou das coisas que dizia. Não me lembro do quanto achava que éramos perfeitos um para o outro, sequer em como não aguentei a pressão e estraguei tudo. Não lembro dos meus temores, das tuas angústias nem de nossas discussões. Não lembro do quanto te decepcionei ou dos insultos que recebi. Não lembro do quanto sofri, tampouco do quanto te fiz sofrer.

Esqueci de meus atos imaturos e de tuas infantilidades.

Não lembro.

...

Confuso em meio a fragmentos desconexos de memórias que nunca me deixaram. Me sinto perdido e sem mapa ou bússola para me direcionar. Tropeço em sensações que nem sei de onde vieram, emoções que brotam do solo sem sentido aparente. Sigo vagando sem rumo, morando em mim mesmo sem endereço.
Procurando algo que um dia foi você, o esquecimento me livra da falsa presença, mas me mantém lembrando da ausência sem falta.

Mas esqueço, esqueço e re-esqueço.

Esse esquecimento que me afeta... e eu nem lembro o porquê.

Não lembro nem que é por você.

  

quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Persinette



Jogando para o lado começo a terapia de desapego
O corte é corajoso, apesar de tímido para o que desejo
Começo cortando as laterais, tirando aos poucos
Abro mão da completude da forma por igual
Deixo um respiro para aliviar com o vento fresco
E já me esqueço dos fios soltos que caem ao chão
Memórias distantes as quais não quero mais

Quantos anos não viram as pontas de meu cabelo?
Acompanharam uma longa parte de minha vida
Hoje tão compridos se tornam um grande peso
E tu, que o admiraste como se aceitasse a meu passado
Com seus dedos a alisar com admiração a minha história
Sem se importar com as pontas duplas ou falta de brilho
Dissera que o queria tão longo quanto nosso amor

Mantenho o corte por um tempo, mas não basta
Ainda me sobre muito de você em cada fio
Afronto seu amor por meus longos cachos
Corto a identidade do que um dia eu fora, para você
Suavemente me liberto das milhares de finas correntes
Desprendo-me da ideia de que um dia gostaste de mim
Rompo os vínculos com decorrido destino

Sem arrependimentos posso sentir de volta
A leveza do mundo esquecer e pelo mundo ser esquecida
Me desfazendo em sutis linhas negras em tênue queda
Posso sentir melhor o vento, e respirar mais tranquila
Por muito tempo engoli suas desculpas cabeludas
De fio em fio eu formei um bezoar que descreve nosso amor
Um emaranhado de desentendimentos internalizados a incomodar

Mas não mais, se foi ao vento e até mesmo o chão já se faz limpo
Mas nem se crescesse de novo, tudo estará renovado
Não há mais pontas soltas nessa história
Nem longos fios enosados
Não há mais você
Nem nós
Jamais

domingo, 8 de dezembro de 2013

Zero



No escuro abissal do éter espacial uma figura dantesca de proporções titânicas queimava feito uma estrela demoníaca.

Para meu total terror, preso naquele breu infinito sem conseguir sair do lugar, pude perceber que a odiosa presença possuía o que pareciam ser olhos; apesar de a sensação que tive é de que eram cavidades ocas. Seus olhos de buracos-negros transmitiam uma perversidade tétrica e o descomunal corpo celeste me fitava concentrado, o que gerou em meu âmago o maior dos horrores que um ser humano é capaz de sentir.
Girando em movimento perpétuo, lento e contínuo, esperava pela morte enquanto o temível astro mantinha as cavidades oculares obscuras em minha direção, e uma certeza crescia cada vez mais: de que estava a me encarar. Se fazia presente uma sensação de aproximamento sutil, quase impossível de notar.

Levaria uma vida inteira até que tal profana existência me puxasse com sua inexorável gravidade, o que demonstrava o quão longe encontrava-me do maligno titã espacial. Ainda assim seria uma questão de tempo até que fosse devorado por suas chamas negro-púrpuras oscilantes, formadas por fusões nucleares incessantes. Tal ser emanava toda sorte de sentimentos e sensações negativas, como um orbe formado de todo o mal universal concentrado em um único ponto blasfemo.
Sou incapaz de quantificar a quanto tempo me encontro perdido em meio ao vácuo, e sequer lembro como aqui vim parar. Poderiam ser anos, décadas, séculos, eras, éons; não consigo definir. Talvez a massa do objeto possua propriedades que o façam distorcer mais o tempo do que o espaço, senão já teria sido puxado feito um marinheiro preso a uma âncora em direção as profundezas do mar.

É possível que seja tudo um sonho, só isso explicaria. Esse era meu norte na tentativa de me manter são, enquanto as estrelas mantinham seu movimento constante na abóboda giratória. Por vezes tinha a sensação de estar parado e o universo que na verdade se mantinha em movimento a minha volta.
O frio sideral despertou ideias jamais desejadas antes, subitamente me peguei a pensar que não seria de todo mal ser engolido por tal ente herege. Ao olhar diretamente em seus ímpios olhos vazios me senti desfazer em camadas. Traje, pele, carne, ossos e alma separados pela velocidade do movimento no qual me encontrava em direção ao globo em brasa. Em resposta aos meus pensamentos, anunciando sua consciência viva, a entidade passou a exercer uma força misteriosa de atração sobre meu corpo, de tal forma que pude sentir algo como vento, mesmo não existindo ar a minha volta.

Ao me aproximar do centro da esfera sobrenatural, me senti desfazer, enquanto minha mente explodia em uma epifania de pseudo-memórias de outras vidas e existências, se mesclando e montando uma espécie de quebra-cabeças feito de fotos. Para então todas serem queimadas por um fogo negro que aliviou meus pensamentos, limpou minha memória, desfez minhas ideias, desfragmentou minha personalidade e anulou minha existência...