sexta-feira, 25 de outubro de 2013

Epitáfio



Fim.

Conforme a pá entra em contato com o solo úmido, sinto o impacto percorrer meus braços até meus ombros, duros com a tensão do fardo que carrego. Demorei muito, mas duzentas e oitenta e seis linhas depois eu pude finalmente dizer ao ar tudo que precisava ser dito. Agora minha boca é como o terno de madeira encostado ao lado, sob a chuva pesada que o enxarca. Minhas palavras foram gravadas em um pergaminho feito de meu próprio coro, colocadas em uma garrafa e solta ao oceano profundo, afundando com o peso das emoções expressadas.

Cavar na chuva não é nem um pouco fácil, a terra fica úmida e pesada, e a lama me suja até os joelhos, assim como meus antebraços. Mas não posso mais esperar a torrente passar, certas coisas precisam ser feitas, não importando as circunstâncias. Verbos desnecessários encheram o esquife de madeira maciça, sentimentos lacrados que tornam poucos os sete pés habituais. O erro é cavar um buraco que não se consegue sair, deixando o túmulo exposto, e você escondido. Após todo esforço, subir não é fácil, mas é o preço que se paga por cavar uma fenda tão profunda. De lábios selados está no caixão um anjo caído. A costura em seus olhos e boca são para assegurar que não vaze as memórias que com ele foram seladas.

É Samhain e não existe momento melhor para lidar com os mortos. Será a última vez que esse espírito amaldiçoado andará pela terra, voltando para seu confinamento na badalada da meia noite. Após passar as correntes em volta do caixote me certifico de trancar bem os cadeados. Não vale a pena subestimar a força do que ali está guardado, já fizera grande estrago no passado. Por precaução até mesmo suas mãos e pés se encontram atados para que não haja como fugir; está sendo enterrado vivo, é verdade, mas jamais irá morrer. Só precisa se manter aprisionado a muitos metros abaixo da terra, que aos poucos se renovará sobre sua cabeça até que seja esquecido que ali houvera algum abjeto sequer.

Seu dom da imortalidade é sua maldição, e suas asas foram cortadas, muito antes de ser necessário sumir com sua existência, pelas mãos de outro de sua casta. Ao som da tempestade vou descendo a corda até que ele seja coberto pela água que já acumula no fundo. Boa parte do trabalho já foi, sequer posso sentir o suor escorrer no meio dessa tormenta. As gotas caem com força e são geladas; passam limpando a alma e carregando a sujeira acumulada em minha aura enlameada.

Agora só falta jogar terra por cima, e a pá parece pesar uma tonelada neste momento, talvez pelo cansaço de já ter cavado, entretanto uma vez começado o serviço vou até o fim. A cada porção de terra que colide com a tampa feita de magnólia, ecoa fortemente pelas paredes da cova uma vibração que faz minhas pernas tremerem. Mesmo na metade do caminho ainda é possível ouvir os murmúrios da alma penada que resvalam em meus tímpanos como um sussurro bem próximo, até ser silenciado pelas últimas esmurradas da pá contra a terra; que findam o esforço. Enfim uma lápide é posta, com apenas os dizeres "Adeus". Nada mais precisa ser dito e com o término da chuva se percebe um silêncio sepulcral, nem mesmo o vento ousa assoviar.
Ninguém visitará o lugar, e flor alguma será deixada em homenagem. Limpo o suor do rosto, me levanto e sigo para o caminho que já trilhava; rumo ao incerto.

Começo.

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