quarta-feira, 2 de janeiro de 2013

Fragmentos D'Alma



"No princípio era o Verbo, e o Verbo estava com Deus, e o Verbo era Deus."

Passos lentos ecoam pela adoecida casa, desgastada pelo tempo e já cansada de assim ser. Passos lentos levados por joelhos frágeis e pés calejados de contato com o mundo. Um senhor, beirando os três dígitos, caminha em direção ao seu aposento mais vívido e confortável, a sala de livros. Ele poderia chamar de biblioteca, mas prefere deixá-la mais aconchegante e humilde.

Dedos enrugados cobertos por uma fina seda viva se arrasta pelo nariz, já protuberante pela idade, empurrando a fina haste metálica de um pequeno óculos. Com a firmeza de seus ossos, e o que lhe sobra de força nos músculos, ele posiciona uma antiga cadeira de madeira escura, trabalhada em entalhes curvos, para o centro da sala. Não pega um livro sequer. Apenas senta-se e fica a observar tudo o que já leu; Tudo o que um dia soube e tudo no que um dia acreditou.

Divagação. Com seus membros cada dia mais enferrujados e seus órgãos sensoriais gastos, cada vez menos sensíveis, não lhe sobra muita coisa senão pensar. Em tudo que fez e deixou de fazer; o que poderia ter feito e o que quase aconteceu. De fato nem mesmo as probabilidades lhe atraem mais. Com o cenho comprimido, coçando os delicados fios brancos que lhe decoram a cabeça ele se concentra na admiração do todo.

Hipnotizado pela vista da colorida, mesmo que desbotada, combinação de barras verticais, se deixa levar pelos devaneios mais insanos. Seus olhos azuis vislumbram então uma ideia, como um relampejo em sua frente. Seria um raio na janela?

Sem saber se fora sua surdez ou desatenção que o fizera não perceber o barulho, ele se vira na cadeira e repara na janela aberta. Uma suave brisa de outono sopra agitando as cortinas translúcidas. Não está chovendo. Talvez não tenha sido um raio. Talvez...

O ancião então ajeita sua longa barba branca e deposita seu cotovelo ossudo no braço acolchoado da cadeira, apoiando em seguida sua cabeça preguiçosa. Então se põe a pensar:

"Afinal, o que posso dizer sobre a realidade; depois de ver coisas impossíveis acontecerem, e de ver o lógico ser o mais improvável?"

Ainda mais agora, com suas noções distorcidas pelos ciclos, não saberia diferenciar o irreal do real. Cada um desses livros amontoados, sobrepostos e encostados, são noções tão distintas da totalidade. Dentre os mais sinceros estão os de fantasia e ficção, que deixam transparecer os maiores anseios da alma humana. Desde garoto nunca subestimou o poder das palavras, e agora compreende melhor o que jamais concluíra depois de tantos versos, capítulos e compêndios.

Eis que pela janela entra um gélido sopro. Um Vento instigado pela Curiosidade se aconchega em seu colo. E sem perceber, o sábio senhor é pego por um sussurro:

As palavras possuem alma.

Não apenas isso - pensa ele brevemente - elas são parte da alma humana. Cada significado e sentido é uma fagulha da nossa incompreensão com nós mesmos.

Sábios monges e o voto de silêncio, sábios animais e homens das cavernas.

Não criamos algo que já não existisse em nós mesmos, apenas nos dividimos, nos dilaceramos. E aos poucos fomos nos perdendo, sem saber o todo que nos cabe, e o quanto cada pequeno detalhe que não compreendemos nos faz falta.

Cada palavra, da mais sofisticada até a mais genérica; até mesmo as que discordamos e odiamos, são partes de nós. E assim ele coletara, uma por uma, para então finalmente encontrar de onde vieram.

As palavras possuem vida.

Elas nascem, crescem, se multiplicam, transformam e até mesmo morrem.

Sua consciência experiencia uma tempestade de ligações. Uma Epifania aos poucos o desperta. A trama da existência inteira parece se contorcer. Ele sente seu corpo derreter ao observar cada palavra que um dia já lera fugindo dos livros, cada uma com sua distinta forma física. O Vento assustado então foge pela janela, rumando em busca de algo pelo céu noturno.

Em um galho, próximo ao local está a Curiosidade pasma com tudo que despertara. Seus grandes olhos de felino e suas orelhas de raposa tremem de excitação. Excitação essa cortada por um Vento gélido, que lhe dá calafrios. Um pequeno inseto voa a sua volta sem parar, zumbindo em sua orelha. É a Culpa:

- O que você fez?
- Não sei ainda. Estou louco para ver o resultado.

O Vento irritado percebe como se deixou levar por uma das criaturas menos confiáveis, passando feito um tufão, arrastando as folhas das árvores. Voando para bem longe dali.

- Interessante, não? - Pergunta a pequena criatura de dedos finos, com um sorriso discreto na boca, de quem não consegue conter o entusiasmo.

Mexendo em suas pequeninas chaves que carrega em sua cintura, a criatura foge da bronca e vai em direção a casa - Mal posso imaginar tudo o que pode acontecer a partir de então. - Sua caminhada é interrompida abruptamente por um muro cheio de portas e gavetas. Estática, a Curiosidade decide observar seu obstáculo, e sem exitar tenta uma de suas chaves finas e compridas na fechadura principal. Se surpreende novamente ao ver um manto liquido se projetar do muro formando uma silhueta humana de capuz e trajes de monge. Em sua mão o misterioso ser traz uma ânfora, com uma boca em relevo, a qual sua outra mão silencia.

- O que fizestes criatura tola?
- Segredo? O que fazes aqui? Por que me impedes? Não faço nada além de meu intento primordial.
- Basta! Percebes o que está acontecendo? Ele está alterando toda a trama do mundo, interna e externa. Não posso falar mais que isso. Enquanto não resolveres este problema, terás a Culpa em seu fardo.

Cavando as costas da Curiosidade com o intuito de se esconder e se enterrar para se esquecer, a Culpa encontra o Desespero emergindo e se arrastando. Preocupado e inseguro, ele decide correr atrás de qualquer um que pudesse prover algum tipo de ajuda, deixando a Curiosidade a se coçar.

Após sair das costas da Curiosidade, o Desespero corre perdido gritando por ajuda. Suas pernas tortas cheias de pequenos cortes tremem e seus joelhos ossudos se chocam. Em um dos ombros está a Ansiedade, um pequeno mamífero respirando tão rápido que sua respiração solta um barulho incômodo. A irritante criatura de olhos esbugalhados arrasta suas garras na pele de seu hospedeiro de forma inquietante. Do outro lado vemos a Preocupação que intercala entre cada "e se" uma bicada na cabeça do pobre Desespero.
Caído no chão, o disforme ser olha para frente e enxerga um pé de mármore. Levanta seus olhos e observa uma fria imagem, a lhe fitar de cima para baixo.

- O que está acontecendo? Nada está fazendo sentido.
- Eu, não... Eu não sei. A Curiosidade. Ela fez algo. A existência está em choque. Epifania toma conta dos pensamentos. O velho está se desfazendo. - balbucia com as palavras se atropelando o Desespero.

A Razão então demonstra interesse. Seu senso lógico agora monta o quebra cabeça e ela compreende o monstro, que agora a enxerga melhor: Figura de mármore e rosto neutro, seu cabelo retilineamente escorrido para trás. Em suas mãos porta um escudo e uma lança. Uma coruja lhe sussurra algo no ouvido e ela então afirma categoricamente:

- Tenho a solução! - Com um esfregar de mãos, razão cria uma borboleta azul e então a assopra. A borboleta segue em direção a casa, deixando um rastro luminoso de pequenos pulsos elétricos.

De volta a casa observamos como tudo começa a se desfazer em um redemoinho de estilhaços e farpas. Na antiga e detalhadamente entalhada cadeira, encontramos apenas um líquido escorrendo e se esparramando no chão. Logo a frente está a Epifania, de corpo belo e curvilíneo, mas com patas de bode e grandes chifres curvados para trás. Em sua mão está um cérebro com as vértebras se enroscando em seu braço. Ela saboreia com prazer a vibração que aquele órgão emana.

De súbito a porta é escancarada por outra beldade. De rosto mais severo com olhar concentrado e mãos intimadoras a apontar para entidade demoníaca.

- Chega desta libertinagem! Dê-me este cérebro! Pare com essa loucura!
- Ele que me chamou. Ele me queria aqui. Você nada pode fazer.

Uma rajada de vento agita as vestes da Sanidade. O que não acontece com seu cabelo devidamente preso em um coque. Ela sabe que nesse momento nada pode fazer. Está presa a lógica da sagaz Epifania, mas se vê surpreendida por uma chance de virar o jogo. Uma borboleta adentrando pela janela, zanza através da sala e para no encosto da cadeira.

Os ventos se agitam e com um turbilhão de fagulhas eletroquímicas, o pequeno inseto se transforma em uma jovem donzela de feições delicadas. Em suas costas ainda preserva enormes asas de borboleta.

Apesar de delicada aparência, sua cara demonstra uma firmeza de decisão. Ela encara suas companheiras de sala e chama a Sanidade mais para perto. Com um giz, desenha em volta da cadeira um quadrado equilátero, preenchido por um pentagrama com símbolos e hieroglifos jamais antes vistos.

- Prepare-se.

Epifania se vê com a Dúvida a lhe incomodar. Uma garotinha de cabelos cacheados, que não para de perturbá-la. Estática, não sabe o que fazer. Com a distração nem percebe que o cérebro agora se encontra a flutuar na cadeira com a coluna verticalmente alinhada com a base quase a tocar o acento, e o lobo occipital próximo ao encosto.

A Sanidade começa a se transformar, tornando sua pele brilhosa e reflexiva, se expandindo e se afinando. A Mente, batendo suas asas azuis, então começa a entoar um encantamento. Com seus braços arqueados e dedos bem abertos envolvendo a massa encefálica, ela decide rearranjar o que foi feito e mudar a noção recém concebida.

- Intelecto desfeito, corpo inato, personalidade rompida e ideias esquecidas. Quem vos fala é a Mente! É a alma! E lhes dou uma ordem. Recomponham-se. Se refaçam. O que um dia fora agora não é mais, e o que soubera sequer existiu. Invoco e rogo que me ajude. Ilusão!

O que se vê é algo próximo ao caos. Uma grande mistura de cores, cheiros, tatos, sons e sabores explodem, quase perdendo o controle. Tentáculos surgem e aos poucos vão se agarrando a cadeira, até que a Mente entoe:

- Para definir o mundo, lapidar as possibilidades, reescrever a verdade. Com a temperança de um deus, reconstruo aqui a maior das ilusões: A Realidade!

A janela bate gelando o sangue do ancião com o susto. Ele havia caído no sono. Já estava tarde e esfriava cada vez mais. Decidiu que era melhor fechar a janela e ir para o quarto, estava frio e não queria pegar um resfriado. Afinal de contas, apesar do cansaço de uma vida longa, ele queria, mais que tudo, viver. Sem saber de onde vinha esse ânimo todo, ele viu um último sopro sair pela fresta da janela ao fechar. Um vento se projetou acariciando seu rosto, como um suave beijo de boa noite. Era hora de deixar os livros de lado - pensou ele.

- Irei aproveitar a manhã seguinte. Quem sabe viajar. Já faz tanto tempo...

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